quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

OBJETO IDENTIFICADO


por Luci Alcântara
Como documentarista, em busca de um cinema de procura e revelação, atuo de muitas maneiras durante a captação do que posso ou determino registrar. Num desses papéis, o de sujeito e instrumento de divulgação do outro, disposta a ouvir e observar o depoente, eu me sento e me sinto à vontade para identificar meu objeto fílmico. Munida do lema “quem cansa em quantidade alcança a qualidade” e seguindo o cineasta Nagisa Oshima, que me inspira quando diz que “os fundamentos do cinema documental são o amor pelos personagens que filmamos e o tempo que dedicamos a eles durante as filmagens”, me dano a filmar até a exaustão de uma das partes – a minha ou a do outro.  
Foi por esse justo motivo que meu objeto-mor, o famigerado Jomard Muniz de Britto, me cognominou “cineasta vampira”. Na verdade, durante o processo de captura a JMB, no qual assunto e personagem coincidem, a sugação se mostrou necessária nas diversas situações aleatórias e/ou planejadas, para que o discurso documental construísse a narrativa desejada. Foram várias e muitas as formas de filmar Jomard, e talvez nenhuma tenha sido fiel ao personagem-pessoa; mas, na insistência de realizar um documentário de retrato pessoal, busco uma ênfase no seu estilo e na sua expressividade, atuando como mediadora entre o ator social que fala por si mesmo e o personagem criado naquele instante imagético, em detrimento do propósito social. Um atentado audiovisual ao estilo do entrevistado, sempre em busca da mais crítica e poética modernidade.                                                                             
“Cuidado, senão ele vai te engolir” foi o que ouvi assim que iniciei a pré-produção. Na realidade, ele me fumou, tragou e baforou. Durante as filmagens, meu papel de sujeito ficava em segundo plano, ora quando ele me puxava ao quadro transgredindo minhas regras e revoltando-se com a condição de objeto de trabalho, ora quando encarnava Drew no meu cinema direto, e ele se transfigurava em Rouch com seu cinema-verdade, e vice-versa. Na tentativa de representar JMB como indivíduo único e distintamente mítico, priorizei seu universo paralelo de citações e preferências, para que seu talento argumentador, que é seu diferencial, quase uma marca, fosse registrado. Sua figura singular de múltiplos olhos, ouvidos e língua plural conduziu não só a minha mão de realizadora, e numa boa parte das cenas me inserindo no contexto e interagindo com o próprio, mas toda a equipe envolvida no mundo de JMB, o famigerado. Como um reinventor de possibilidades, um verdadeiro arquivo de projetos e destinações, fomentando lições de inconformismo, nos fez atravessar o tempo-espaço das linguagens audiovisuais com seu discurso poético e subjetivo com muito peso e fartas medidas tanto na forma quanto no conteúdo.  Agora, na solidão da ilha de edição, a companhia de um vasto e rico material que colhi e mil ideias na cabeça, só me restam os cortes, este mal inerente à montagem, que vão doer na primeira camada da minha derme impregnada de ousadias e estripulias.  

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